7.10.2010

Espelho

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade escrita por Álvaro de Campos de cor.
 Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer. Roubei palavras de Pessoa, personifiquei seus versos. Dei-lhes rosto, ossos, carne e sangue. Dei-lhes mãos para tocar a vida. Dei-lhes corpo para agir e seguir por ai desfazendo coisas, refazendo outras. Não me sinto mais o mesmo e não tenho mais irmandade com as coisas. 
Vou me desligando aos poucos. Os dias são como uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua não mais meus. São todos seus, seus feitos, suas palavras, suas fugas, seus erros, sua vida.
 De dentro da minha cabeça,
 uma flor desabrocha. Uma rosa de carne pulsa e cresce alimentando-se de sangue, sonhos e amores. Todos meus, nada seu. Numa sacudidela dos meus nervos, ela se abre. Num ranger dos meus dentes, ela pulsa. São os meus ossos na ida. São os seus enterrados. Eu, vou. Você, foi. Pelo espelho, enterro um outro eu de mim mesmo.


***

"Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida."
Álvaro de Campos


Um comentário:

Anônimo disse...

“Ed il nostro amore, il nostro dolore, la nostra
felicità non altro eran che morte cose”
(Gabriele D’Annunzio)

aqui tem mais do mesmo

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