Um corte. Único, o primeiro de muitos. Dor não foi repentina, veio lenta e morna. Sangrou. Acostumou-se, voltou a cortar-se. Doeu. Dor cresceu, ganhou todo emanharado sensorial. Ganhou cor, vermelho. Ganhou sentido, chão. Deu rumo em um mundo estreito. Com Machado no coração prisioneiro lembrou-se que “um desvão no telhado é infinito para as andorinhas”. No braço uma. Na sua frente, o mundo estreito que não lhe bastava mais. Daquela hora em diante queria o infinito que o desvão oferecia. Descobriu que sangrar sozinho não era vida. Até ali, nunca havia cicatrizado, nem visto o mar ou estrelas. Nunca sentiu o cheiro do sal, desenhou sereias ou sonhou com monstros. Nada viu, nem flores, nem abelhas ou provou maçãs no escuro da sua vida. Tinha com todas as forças protegido o coração e, no meio deste hercúleo trabalho, perdeu as chaves. Com o desvão na cabeça, todas as palavras e vozes nunca ouvidas preencheram os espaços. Sussurram elas coisas que o quebravam – coração – em mil e um pedaços. De frente ao penhasco aberto em seus pés, pulou. Voou. Fugiu pelo desvão montado na andorinha que um dia em segredo fez morada em seu braço.
"Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas. Vê agora a neutralidade deste globo, que nos leva, através dos espaços, como uma lancha de náufragos, que vai dar à costa: dorme hoje um casal de virtudes no mesmo espaço de chão que sofreu um casal de pecados. Amanhã pode lá dormir um eclesiástico, depois um assassino, depois um ferreiro, depois um poeta, e todos abençoarão esse canto de Terra, que lhes deu algumas ilusões."
Memórias Póstumas de Brás Cubas por Machado de Assis.